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29 janeiro, 2023

Às armas. Pacifistas juntam-se à tendência de investimento na defesa

Japão e Alemanha, em resposta à China e à Rússia, revertem décadas de políticas de secundarização das forças de segurança e de defesa motivadas pelo expansionismo que desembocou na Segunda Guerra. Tóquio e Berlim validam máxima do chanceler Bismarck: "A diplomacia sem armas é como uma orquestra sem instrumentos".

Miniatura de um tanque soviético T-80BV. Indiferente às sanções económicas, Vladimir Putin diz não haver restrições de financiamento aos militares.© NATALIA KOLESNIKOVA/AFP

*Diário de Notícias, por César Avó - 29/01/2023

Há coisa de 11 meses, dias depois de Vladimir Putin ter dado ordem para a "desmilitarização" e "desnazificação" da Ucrânia, o chanceler alemão proferia um discurso no parlamento sobre os "tempos de mudança" (Zeitenwende) e no qual anunciou cem mil milhões de euros para reequipar o exército. O Japão, outro país que carrega o peso do militarismo associado a um regime totalitário, respondeu ao fortalecimento militar da China (e à contínua ameaça da Coreia do Norte) com uma nova estratégia de segurança nacional e um orçamento a condizer. Não por acaso, Zeitenwende foi a palavra de 2022 para os alemães e os monges japoneses do templo de Kioymizu escolheram como ideograma do ano o que significa batalha ou guerra.

Estes são os exemplos de maior simbolismo e que implicam movimentos tectónicos nas respetivas sociedades. Porém, da América do Norte ao Extremo Oriente está em curso, se não uma corrida ao armamento, pelo menos um movimento de investimento militar, que não foi desencadeado com a invasão russa, antes ganha novas dimensões.

Em 2021, os gastos combinados das forças armadas ultrapassaram os 2,1 biliões de dólares, um crescimento de 0,7 pontos percentuais em relação ao ano anterior e um máximo de sempre, segundo contabilidade do Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SIPRI). E a tendência é para agravar.

A ascensão da China a potência militar desencadeou uma resposta musculada dos Estados Unidos e do Japão, mas também da Índia, cujos cidadãos veem agora Pequim como a maior ameaça militar e não o arqui-inimigo Paquistão.

O país que mais gasta em defesa, os Estados Unidos, tem um orçamento para 2023 de 858 mil milhões, um aumento de oito pontos percentuais. O seu grande rival económico, a China, aprovou para 2022 um orçamento de 229 mil milhões de dólares, um aumento de 7,1 pontos percentuais. A desaceleração económica - o produto interno bruto cresceu 3% em 2022, o valor mais baixo desde 1976 se excluirmos 2020, marcado pela pandemia - trará um dilema aos decisores do regime comunista, que por norma fazem acompanhar o crescimento orçamental militar a par do económico.

Nos últimos meses, e em particular depois da visita da então presidente da Câmara dos Representantes dos EUA Nancy Pelosi a Taiwan, Pequim respondeu com uma agressividade inédita. As demonstrações de poderio militar chinês sucederam-se no estreito de Formosa ou na zona de identificação aérea e o líder chinês Xi Jinping não excluiu o uso da força para tomar a ilha, ao que o presidente norte-americano Joe Biden disse que as forças do seu país apoiariam Taipé.

O contratorpedeiro de mísseis guiados INS Mormugao é o segundo da sua classe da Marinha indiana, construído em Mazagão. O seu nome presta homenagem ao porto de Mormugão, em Goa.© THOMAS KIENZLE / AFP


A fechar o pódio dos mais gastadores em defesa (e o maior importador de armamento) está a Índia. A maior democracia do mundo, que historicamente olha com desconfiança para o Paquistão, está agora mais preocupada com a China. É o que revela uma sondagem recente, segundo analisa a Foreign Policy: 43% dos inquiridos veem em Pequim a maior ameaça, e 22% em Washington, ficando Islamabade a par de Moscovo, com 13% de respostas.

A Índia é o país que mais armas adquiriu no estrangeiro entre 2017 e 2021, 11% do bolo total. O PM Modi quer a indústria indiana a produzir tudo e cancelou compras de aviões e helicópteros, mas peritos avisam que o país pode ficar sem equipamento suficiente.

O que leva a estes resultados explica-se em parte com as recentes disputas fronteiriças, ao que não ajudará o facto de a linha ao longo de mais de 3400 quilómetros entre ambos os países não estar definida - o problema que levou à guerra de 1962 e que terminou com uma vitória chinesa. Por outro lado, Nova Deli vê com preocupação a presença crescente da marinha chinesa no Índico, enquanto Pequim se prepara para ter um terceiro porta-aviões.

A China, uma vez mais, é também o fator decisivo para a viragem histórica do Japão. Nos últimos anos, o primeiro ultrapassou o segundo na vice-liderança económica enquanto os orçamentos militares também acompanharam essa expansão. Sete décadas de pacifismo não chegam ao fim no papel, uma vez que a Constituição não foi objeto de mudança e mantém-se o princípio de umas forças de defesa e sem recurso a armas nucleares.

Artigo 9.º A Constituição japonesa estipula que "renuncia para sempre à guerra como um direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como meio de resolução de disputas internacionais".

No entanto, a aprovação da nova estratégia de segurança nacional, que premeia o esforço de anos de Shinzo Abe, o ex-líder japonês assassinado no ano passado, aponta o dedo a Pequim: "um inédito e maior desafio estratégico" para a paz e a segurança do Japão e da região. Em concreto, Tóquio vê com preocupação as atividades militares chinesas em redor das ilhas Senkaku, que a RPC reclama suas (bem como Taiwan) e o lançamento de mísseis balísticos que caíram em águas próximas do Japão.

O PM japonês Fumio Kishida e o presidente norte-americano Joe Biden na Casa Branca.© EPA/JIM LO SCALZO

O governo de Fumio Kishida apresentou o orçamento da defesa de 2023 para um recorde de 55 mil milhões de dólares, mais 20% que no ano anterior. Além disso planeia quase duplicar o orçamento dentro de cinco anos. As prioridades passam por melhorar a cibersegurança e os serviços de informações, e pela aquisição de centenas de mísseis de cruzeiro Tomahawk, que podem ser instalados nos navios e ter capacidade para atingir locais de lançamento de mísseis, seja na China, seja na Coreia do Norte, uma permanente ameaça à paz na região.

500 Tomahawk. Entre outros investimentos, o plano japonês a cinco anos passa pela aquisição de meio milhar de mísseis de longo alcance Tomahawk, de fabrico norte-americano.No final do período, o país deverá ter o terceiro maior orçamento em defesa.

O norte-coreano Kim Jong Un quer um "aumento exponencial" do arsenal de armas nucleares do país já nos próximos meses, e Pyongyang está a construir uma frota de lança-foguetes móveis de grandes dimensões com a capacidade de atingir qualquer ponto do Sul com uma ogiva nuclear. A febre atómica do ditador pode traduzir-se em até 300 armas nucleares nos próximos anos.

A reação de Seul não se fez esperar e, pela primeira vez, o presidente Yoon Suk Yeol sugeriu a entrada no clube nuclear, enquanto afirmou que o caminho para prevenir ataques passa por ter uma capacidade para "ripostar cem vezes ou mil vezes mais". Contas feitas, o orçamento da defesa para 2023 sofre um aumento de 4,6% em relação a 2022 e situa-se nos 42 mil milhões de dólares.

A Rússia, na sequência do ataque lançado em larga escala à Ucrânia, viu-se na obrigação de rever em alta o orçamento da defesa, que é agora de 84 mil milhões de dólares. Vladimir Putin, que disse não haver "restrições de financiamento" para os militares, planeia gastar um total de 600 mil milhões de dólares na defesa nacional, segurança e ordem pública entre 2022 e 2025.

O chanceler Scholz, de visita às instalações da empresa Hensoldt, observa um sistema de vigilância.© THOMAS KIENZLE / AFP

A Alemanha, que desde a reunificação apostou no desenvolvimento de relações económicas com a Rússia como um fator de mudança pró-ocidental, ou pelo menos de estabilidade, em especial com os gasodutos Nord Stream, acordou para a realidade e o chanceler Olaf Scholz denunciou o "imperialismo" de Putin. Anunciou também um pacote de cem mil milhões de euros para investir em equipamento militar e em cumprir de então em diante, o compromisso de reservar o equivalente a 2% do PIB em despesas de defesa.

67% de apoio. Segundo sondagem publicada em junho no portal T-online, dois terços dos alemães aprovam o pacote de cem mil milhões para equipar o exército, mas as regiões orientais mostram-se divididas.

Mas é mais fácil de dizer do que fazer num país que carrega às costas o passado nazi, ao que se juntam repetidos escândalos de neonazis infiltrados nas forças armadas. A isto acrescente-se uma burocracia tão extensa como o nome do departamento responsável pela aquisição (Gabinete Federal de Equipamento, Tecnologias de Informação e Apoio ao Serviço do Exército). Uma encomenda de um artigo como uma mochila tem de passar por 12 repartições, segundo revela a NPR. Um funcionário da empresa construtora dos tanques Leopard, KMW, diz que nem um euro foi encomendado, o que ajudará a explicar porque nem o orçamento anual de 50 mil milhões foi gasto na totalidade (300 milhões a menos) e que, em consequência, o objetivo de atingir 2% do PIB esteja muito longe de alcançar.

Na sexta-feira, o novo ministro da Defesa, Boris Pistorius, mostrou que quer agitar as águas: disse que o processo de aquisição tem de ser mais rápido, é da opinião que os cem mil milhões não chegam para as encomendas, nem o orçamento.

Na base aérea de Mont-de-Marsan, o presidente Macron anunciou que o orçamento da Defesa vai aumentar em um terço em sete anos.© EPA/Bob Edme/POOL

O par de Berlim na construção europeia pós-guerra, Paris, não é indiferente aos desafios da Rússia. E estes não se restringem ao continente europeu. Em África, o presidente Macron anunciou o fim da operação Barkhane, de combate aos grupos jihadistas, com os mercenários russos a preencherem o vazio.

Mais concentradas na Europa, as forças armadas francesas vão receber mais de 400 mil milhões de euros para o período 2024-2030, um aumento de 30% em relação ao período em vigor. "Depois de repararmos as forças armadas, vamos transformá-las", prometeu o líder francês, apostando na rapidez de ação e no incremento da força, em paralelo com um maior investimento nas defesas aéreas, na cibersegurança e nos serviços de informações militares.

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